Cheiro de terra molhada. Sei que era isso. Me lembra quando era ainda uma criança brincando por essas bandas. Aqui cresci e me criei, conheço tudo. Cada morro desses, o riacho, o barranco. Sim, este cheiro me é familiar. É o mesmo que sentia naqueles tempos. O cheiro pós-chuva.
Impressionante como uma sensação te faz voltar no
tempo. Tempo bom que não tinha preocupações. Porém, de fato existiam. Era o
filho do senhor do local. Todos me conheciam e me respeitavam. Mas também me
cobravam quando precisavam de algo, quando faltava-lhes alguma coisa. O que me
fazia diferente era este contato. Mesmo pequeno, mesmo criança, todos sabiam
que podiam contar comigo. Conhecia todos pelo nome. Sabia que o velho Billin
era um ranzinza que adorava reclamar da vida e dos outros, a dona Mirian fazia
o melhor pão caseiro na região. Tinha vários amigos para brincar, correr comigo
pelos morros, nadar no riacho. Brincávamos até debaixo de chuva, lembro bem
deste cheiro.
O reino de Beltemor fica na costa oeste do
continente de Campane. O Castelo do Lobo Cinzento, como é conhecido, é uma colossal
edificação que pode ser deslumbrada de longe, tamanha é sua imponência. Dizem
até que é um dos mais belos castelos de todos. Logo na entrada existe uma
enorme figura entalhada em pedra retratando um lobo gigante, arte do melhor
artista dos tempos antigos, Michel D’Olere. Sei disso porque o meu avô contava
as histórias de um dos seus antepassados, Sor Antony D’Olere, o conquistador.
Basicamente, a história do local se divide em antes e depois dele, mas isso não
vem bem ao caso agora. Seu tio fez esta obra em sua homenagem, para agradecer
pelos feitos heroicos. Nosso símbolo de força eternamente esculpido. Sim, sou
Jyn D’Olere, filho de Persival D’Olere, o justo. Sei que um homem na posição do
meu pai não poderia permitir que o seu filho andasse por aí como se fosse um
qualquer. Até porque sou o primogênito, eu que iria herdar tudo e teria que
saber das coisas. Não gostava muito desta parte, ter que ler todos aqueles
livros, saber sobre heráldica, montaria, esgrima e afins. Gostava mesmo era de
correr, me juntar com os outros. Principalmente nas horas em que chovia. Era
quando sentia que era purificado por Ojir, deus todo poderoso. Sentia este
cheiro, o cheiro de terra molhada.
Cheiros. Estou sentindo vários. É como se pudesse
perceber tudo o que está a minha volta só pelo sentido do olfato. Engraçado
como está mais fácil perceber as diferenças. Consigo distinguir facilmente uma
rosa do canteiro da senhora Helena de uma margarida que enfeita a liteira da
condessa Cecília. Pior é esta fome. Não sei o que quero comer. Ou melhor, sei.
Instintos primitivos me vem à mente. Desejo por algo mais simples, como um
pedaço de carne crua mesmo é o que me povoa e me inquieta. E este brilho que
percebo? Sim, não tinha visto que escureceu. É a lua reluzindo sobre a
superfície do rio e suas poucas ondas calmas.
A mente não consegue mais controlar os desejos do
corpo. Uma força bestial toma conta do meu corpo. Não respondo mais por mim.
Não estou no controle. Não sou mais quem eu era, quem deveria ser, quem fui.
Não sei quem sou. Não sei o que sou.
Quem é aquela pessoa que vejo ao longe? Flashes
rápidos nos curtos instantes de consciência me fazem perceber que a parte que
me domina está avançando para cima de uma garota que está perto da margem do
rio. Não consigo descrever mais. É muito grotesco. Voltei à consciência e
percebi que estava com as mãos e corpo sujos de sangue. O que foi que eu fiz...
Só me resta tentar limpar aqui mesmo no rio antes que alguém chegue. Se é que
já não viram. A moça gritou tanto que....
- Antônio, venha logo pra dentro! Chega de brincar
na chuva! Traga logo o Max. Esse cheiro de cachorro molhado vai ficar na casa
toda!
- Mas, mãe...
- Chega! Você vai acabar pegando uma pneumonia,
menino!