segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

Cheiro de Terra Molhada


Cheiro de terra molhada. Sei que era isso. Me lembra quando era ainda uma criança brincando por essas bandas. Aqui cresci e me criei, conheço tudo. Cada morro desses, o riacho, o barranco. Sim, este cheiro me é familiar. É o mesmo que sentia naqueles tempos. O cheiro pós-chuva.

Impressionante como uma sensação te faz voltar no tempo. Tempo bom que não tinha preocupações. Porém, de fato existiam. Era o filho do senhor do local. Todos me conheciam e me respeitavam. Mas também me cobravam quando precisavam de algo, quando faltava-lhes alguma coisa. O que me fazia diferente era este contato. Mesmo pequeno, mesmo criança, todos sabiam que podiam contar comigo. Conhecia todos pelo nome. Sabia que o velho Billin era um ranzinza que adorava reclamar da vida e dos outros, a dona Mirian fazia o melhor pão caseiro na região. Tinha vários amigos para brincar, correr comigo pelos morros, nadar no riacho. Brincávamos até debaixo de chuva, lembro bem deste cheiro.

O reino de Beltemor fica na costa oeste do continente de Campane. O Castelo do Lobo Cinzento, como é conhecido, é uma colossal edificação que pode ser deslumbrada de longe, tamanha é sua imponência. Dizem até que é um dos mais belos castelos de todos. Logo na entrada existe uma enorme figura entalhada em pedra retratando um lobo gigante, arte do melhor artista dos tempos antigos, Michel D’Olere. Sei disso porque o meu avô contava as histórias de um dos seus antepassados, Sor Antony D’Olere, o conquistador. Basicamente, a história do local se divide em antes e depois dele, mas isso não vem bem ao caso agora. Seu tio fez esta obra em sua homenagem, para agradecer pelos feitos heroicos. Nosso símbolo de força eternamente esculpido. Sim, sou Jyn D’Olere, filho de Persival D’Olere, o justo. Sei que um homem na posição do meu pai não poderia permitir que o seu filho andasse por aí como se fosse um qualquer. Até porque sou o primogênito, eu que iria herdar tudo e teria que saber das coisas. Não gostava muito desta parte, ter que ler todos aqueles livros, saber sobre heráldica, montaria, esgrima e afins. Gostava mesmo era de correr, me juntar com os outros. Principalmente nas horas em que chovia. Era quando sentia que era purificado por Ojir, deus todo poderoso. Sentia este cheiro, o cheiro de terra molhada.

Cheiros. Estou sentindo vários. É como se pudesse perceber tudo o que está a minha volta só pelo sentido do olfato. Engraçado como está mais fácil perceber as diferenças. Consigo distinguir facilmente uma rosa do canteiro da senhora Helena de uma margarida que enfeita a liteira da condessa Cecília. Pior é esta fome. Não sei o que quero comer. Ou melhor, sei. Instintos primitivos me vem à mente. Desejo por algo mais simples, como um pedaço de carne crua mesmo é o que me povoa e me inquieta. E este brilho que percebo? Sim, não tinha visto que escureceu. É a lua reluzindo sobre a superfície do rio e suas poucas ondas calmas.

A mente não consegue mais controlar os desejos do corpo. Uma força bestial toma conta do meu corpo. Não respondo mais por mim. Não estou no controle. Não sou mais quem eu era, quem deveria ser, quem fui. Não sei quem sou. Não sei o que sou.

Quem é aquela pessoa que vejo ao longe? Flashes rápidos nos curtos instantes de consciência me fazem perceber que a parte que me domina está avançando para cima de uma garota que está perto da margem do rio. Não consigo descrever mais. É muito grotesco. Voltei à consciência e percebi que estava com as mãos e corpo sujos de sangue. O que foi que eu fiz... Só me resta tentar limpar aqui mesmo no rio antes que alguém chegue. Se é que já não viram. A moça gritou tanto que....

- Antônio, venha logo pra dentro! Chega de brincar na chuva! Traga logo o Max. Esse cheiro de cachorro molhado vai ficar na casa toda!
- Mas, mãe...
- Chega! Você vai acabar pegando uma pneumonia, menino!

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Correndo Atrás da Lebre


Quantos torrões de açúcar? Um... Dois... Gotas de limão? Uma... Duas... Um pingo de leite? Ping... Pronto. Beba. Beba. Está delicioso, do jeito que ela gostava... Sim, ela adorava este chá. Claro, sempre que vinha aqui, tinha que provar. Era esta a desculpa.

A garota de cabelos cacheados correu atrás de uma lebre. A lebre, que não é boba nem nada, não ia se deixar capturar por aquela garota de cabelos cacheados que correu atrás dela. Chegou ao lado de uma árvore, viu um buraco e se jogou numa tentativa desesperada de fugir daquela garota de cabelos cacheados que correu atrás dela por todo o parque. A garota de cabelos cacheados que correu atrás da lebre que não era boba nem nada não pensou duas vezes e também entrou no buraco na tentativa de poder capturar a lebre.

Lá veio ela. A garota de cabelos cacheados correndo atrás da lebre. Lá veio ela, em minha direção. Quando me viu, congelou. Eu não sabia quem era aquele ser iluminado que estava diante dos meus olhos, mas era a garota mais linda do mundo, ela e seus cabelos cacheados, correndo atrás de uma lebre.

Quando chegou mais perto, pude notar. A garota de cabelos cacheados que corria atrás de uma lebre tinha lindos olhos azuis. Azuis como o céu. Azuis como o mar. Azul do jeito que me confundia, não sabia se estava olhando em seu rosto ou me perdendo nas ondas do oceano. Ou me perdendo olhando para cima, para o firmamento, refletindo sobre a vida.

Bolachas. Chá com bolachas. Bolo. Chá com bolo. Minha mão tremeu enquanto a servia, fique bastante nervoso. Não era todo dia que tinha visitas. Não era todo dia que tinha uma garota tão linda assim, de cabelos cacheados, com olhos azuis como o céu, azuis como o mar. Quantos torrões de açúcar? Um... Dois... Gotas de limão? Uma... Duas... Um pingo de leite? Ping... Pronto. Beba. Beba. Gostou? Sabia que sim. Sabia que iria gostar. Não, não se acanhe, fique à vontade, pode repetir.

Ela era boa de mesa. Eu fiquei preocupado, achei que não iria gostar das coisas que ali estavam, mas me enganei completamente. Ela provou tudo e aprovou. Sua cara de felicidade não escondia. A garota de cabelos cacheados que correu atrás de uma lebre veio me encontrar. Isso ficou claro na continuação da história.

Saímos para dar uma volta. Mostrei o lugar para ela. Ela adorou. Queria saber o nome de tudo. Queria saber o porquê de tudo. Eu expliquei tudo, tintim por tintim. Mostrei tudo a ela. Ela viu tudo.

Chegamos a um dos meus lugares favoritos: o mar. Ela adorou. Disse que, de onde ela vinha, não existia mar. Eu não sabia se estava vendo os seus olhos refletidos no mar, ou o mar refletido nos seus olhos. Eu não sabia se estava lá, na real, ou flutuando, em êxtase.

E foi assim que tudo começou. Com uma visita. Com uma busca atrás de uma lebre. A garota de cabelos cacheados que correu atrás de uma lebre por todo o parque veio até mim. Não resistimos e nos apaixonamos ali mesmo. E foi assim por dias e dias. Foram os dias mais felizes da minha vida. Todos os dias ela voltava. O problema é que felicidade passou. Ela não voltou mais.

Esperei. Esperei. Esperei tanto que a mesa do chá já criava mofo. Quanto tempo fazia? Acho que dois anos. Sim, dois anos. Esperei por dois anos. Ela não voltou.

Lá vem a lebre. Ela está sempre apressada. Não entendo o porquê da sua... Quem é aquela pequenina garota de cabelos cacheados que vem ali? Ela mal sabe andar. A cada dois passos, uma pausa para retomar o equilíbrio. Quando não, cai, mas logo levanta e continua atrás da lebre. Chegou ao meu lado. Esses olhos... Sim. Os mesmos olhos da garota de cabelos cacheados e olhos azuis que me encantaram antes. Olhei para frente. Sim. Lá estava ela. A garota de cabelos cacheados e olhos azuis encantadores estava lá, parada na minha frente, agora com uma pequenina garota de cabelos cacheados e olhos azuis do lado.

A pequenina parou do meu lado, olhou para cima e disse “Papai”. Na mesma hora meu coração bateu mais forte, tão forte que podia ser ouvido por toda a região. Aquela pequena garota de cabelos azuis e olhos cach... digo, cabelos cacheados e olhos azuis me chamou de papai. Eu sou...

Olhei para frente. A moça de olhos azuis e cabelos cacheados olhou para mim e balançou a cabeça, afirmando que, sim, era minha filha.

As duas estão aqui comigo até hoje. Somos uma família. Todos os dias, nesta mesma hora, o chá é servido. Quantos torrões de açúcar? Um... Dois... Gotas de limão? Uma... Duas... Um pingo de leite? Ping... Pronto. Beba. Beba.

E tudo começou correndo atrás da lebre...

À Beira do Lago



As horas não passam. Ouço apenas o som de um pássaro lá fora. Acho que é um rouxinol, mas pode ser uma cotovia também. É, acho que é uma cotovia. O quê isso tem a ver com a história? Bem, tudo começou numa manhã de domingo...

Eu estava brincando do lado de fora da casa dos meus pais. Moro com meus avós em outra cidade, vim passar o feriado aqui. Meus pais moram à beira de um lago, mas não tem condições de me criar. Trabalham muito. Acharam que seria melhor morar com meus avós. Eu sei que é só por um período curto de tempo (espero). Adoro correr, pular, brincar aqui. Tem muito espaço. Não querem que eu vá muito longe, posso me perder na floresta. Tenho que ficar aqui, pertinho.

Ouvi um barulho estranho, não identifiquei o que era. Aquilo era realmente esquisito. Congelou até a minha alma. Fiquei paralisado de medo. Não conseguia dar um passo. Apenas fiquei lá, olhando na provável direção daquilo. Se fosse um animal, ele deveria estar com medo. Que coisa esquisita. Foram longos segundos assim. Segundos que pareciam minutos, minutos que pareciam horas. Quando minhas pernas obedeceram, corri. Corri o mais rápido que pude. Entrei em casa, tropecei e dei de cara com o chão, bem no meio da sala. Minha mãe veio correndo querendo saber o que estava acontecendo. Eu estava bastante assustado. Ela disse que não foi nada, que não era para temer nada. Eu estava com eles e iriam me proteger. Pedi que não me deixasse sozinho. Ela foi até a cozinha pegar gelo para botar no meu galo que se formou na queda. Fui junto, não quero ficar ali só.

Depois de mais ou menos uma hora, consegui tirar aquilo da cabeça. O barulho, não o galo. Ele ainda teimava em cantar. Papai entrou, perguntou o que tinha acontecido. Lá vou eu lembrar tudo aquilo. Eles se entreolharam e pediram para que ficasse calmo, que nada iria acontecer ali. Percebi um certo ar de mistério. Tenho doze anos, ora. Sempre leio histórias de monstros e outras coisas do tipo. Sei que existem mistérios que nunca foram solucionados. Dizem que eu pareço mais velho, sempre sério, lendo.

Almocei bastante. Adorava a comida da mamãe. Era uma excelente cozinheira. De barriga cheia, fui me esticar numa rede armada na varanda, de frente para o lago. Estava um dia muito lindo, o sol brilhando, poucas nuvens no céu. Papai ficou de me levar para pescar mais tarde. Espero que se lembre disso, costuma esquecer promessas. Que sono bateu. Sinto meu corpo perder as forças, estou sendo levado para a terra dos sonhos. Ouço apenas o barulho de algumas aves ao longe. Sinto sono, muito sono.

Grito. Novamente o grito. Acordo assustado. Caí da rede. Assustado, olho para o lago. Ele está vermelho. Parece que alguém jogou tinta nele. As árvores... As árvores da floresta... Todas, absolutamente todas estão mortas. Meus olhos arregalaram. O sol brilha com um tom de rosa, algo do tipo. Olho em direção à minha casa... Ela está totalmente destruída. Corro e grito pelos meus pais. Lágrimas caem do meu rosto. Choro muito chamando por eles. Nada. Nenhuma resposta. Sento ali mesmo e choro mais ainda. Tenho que me controlar. Tenho que fazer algo. Não consigo pensar. Está tudo tão... Sinistro. Medo. Tenho muito medo. Onde estão meus pais?

Ouço novamente um grito, agora diferente. Parece ser... Sim, é a mamãe. Corri em direção ao som, chamando pelo seu nome. Nem enxergo direito o que está na minha frente, as lágrimas não deixam. Tenho que ser forte, tenho que encontrar a minha mãe. Ela esta gritando. Tropecei em algo. Um galho. Vou usar como um bastão. Se mexerem com a minha mãe, estão ferrados. Estou entrando na floresta destruída. O som veio daqui, acho. Vou entrando e chamando por ela.

Novamente o mesmo grito. Mais para o lado. Corro. Tem uma cabana pequena ali. Assim como a minha casa, ela está toda destruída. Vejo que tem umas caixas que deveriam ser de colmeias de abelhas, vi na TV outro dia. Todas destruídas, como a cabana. Cheguei à porta. Vejo que ali fabrica mel mesmo. Têm vários potes espalhados por prateleiras, alguns quebrados no chão, outros jogados. Chamo pela minha mãe. Nada. Nenhuma resposta. Mais lágrimas. Não. Não posso chorar. Engoli o choro e entrei. Olho para o chão, algo brilhante chama a minha atenção. Era um broche. Sim. O mesmo broche que minha mãe gostava tanto. Era dela. Só podia ser.

Outro grito, agora do lado de fora. Não identifico de quem seja. Minhas pernas bambeiam, mas eu tenho que seguir. Não vou dormir por três meses depois disso... Sigo em direção ao barulho. Parece ser uma voz de homem, mas não é meu pai. Não identifico quem seja, mas vou seguir. As lágrimas teimam ainda em cair.

Achei no meio da trilha um jornal. Tem a data de hoje. Era o mesmo jornal que papai estava nas mãos após o almoço. Poderia estar no caminho certo. Chamo pelo seu nome. Nada. Nenhuma resposta. Novamente o mesmo grito. Ali. Vem dali. Corro o mais rápido que eu posso. Vejo ao longe uma clareira na mata. Parece ser uma madeireira. Vejo uma carreta lotada de toras de madeira. Não tem ninguém aqui. Olho por todos os lados. Nada. Ninguém.

O desespero começa a bater. Estou cansado de andar. Cansado de correr. Cansado... Sono. Meus olhos estão pesados. Não consigo manter os olhos abertos. Não quero ficar ali, não. Não posso. Não consigo. Estou sendo vencido pelo sono. Meus olhos, minhas pálpebras pesam. Cai ali mesmo, no chão. Não sinto nada, não ouço nada.

Acordo assustado, gritando. Era minha mãe me chamando. Dormi na rede a tarde toda. Estou todo suado. Abraço forte minha mãe e começo a chorar. Ela pergunta o que aconteceu. Eu contei do sonho. Ela fala que não tem com o que eu me preocupar, que está tudo bem. Sinto-me bem ali, abraçado com ela. É a minha mãe. Leva-me para dentro. Papai está lendo jornal na poltrona. Como é bom estar em casa. Ela vai para a cozinha me preparar um lanche. Papai foi tomar um banho. Está quente mesmo o dia.

Lá vem a mamãe com leite e biscoitos. Ela passa a mão na minha cabeça e volta para a cozinha. Quando vou dar o primeiro gole no meu leite, ouço um grito. Mamãe gritando. Um grito de pavor, terror. Corro até a cozinha. Nada. Nem um sinal da mamãe. Vou correndo para o banheiro chamar pelo papai. Nada. Nenhum sinal dele. Corro até meu quarto e me escondo no guarda-roupa. Ouço ao longe um pássaro. Acho que é um rouxinol, mas pode ser uma cotovia também. É, acho que é uma cotovia...