Não consigo mais correr. Estou muito cansado. Muito mesmo. Estou fugindo desde quando fui descoberto. Minha sorte é conhecer esta floresta com a palma da minha mão. Consegui despistar meus perseguidores. Idiotas. Quem eles pensam que são? Achariam mesmo que conseguiriam me pegar, aqui, em meu território? Desde pequeno brinco por aqui, conheço cada lugarzinho escondido, cada refúgio.
Estava eu passeando, como de costume, perto do pôr-do-sol, lá pras bandas do rio Vertige, quando escuto passos pesados. Era um batalhão do exército imperial. O quê aqueles caras estariam fazendo ali? Escondi-me e comecei a segui-los. Atravessaram o rio, chegaram às Ruínas Perdidas. Eram doze soldados armados com espadas e escudos. Pareciam determinados a achar algo. Mas o quê? O quê estariam procurando?
Minha curiosidade ainda me mata. Já era noite e eu ainda estava lá querendo entender o que se passava. Idiota. Por que ainda estaria ali, espiando soldados imperiais? Esses caras são conhecidos por não serem muito gentis com prisioneiros, todo mundo sabe disso. Eu tenho que saber o que procuram, eu preciso saber.
Eu já estava ficando com sono. Estava quase esquecendo de onde estava e dormindo ali mesmo, quando um dos soldados grita: “Encontrei!”. Sim, mas... Encontrou o que? Levantei. Olhei e tentei descobrir o que era. Ele levantava uma espécie de livro. Parece que estava escondido debaixo da terra, tinham vários buracos pelas ruínas, pareciam procurar uma espécie de tesouro enterrado. Que estranho. Um livro?
Um dos soldados, provavelmente o capitão, pega o livro e o abre. Parece não entender nada do que está escrito. Burro. Nem ler sabe. Só deve saber mesmo é matar inocentes. Nunca vou esquecer-me do massacre da vila de Missindur. Todos foram mortos em nome do rei. E que rei é esse que temos. Um tirano safado que só quer saber de lucrar com impostos. Opa. O que é aquilo? Quem é aquele perto do capitão? Não estava ali. Eu juro. Aquele homem com longos cabelos grisalhos não estava ali. Ele segura o livro, parece maravilhado, está com os olhos esbugalhados, como se fosse uma criança que encontrara o seu brinquedo preferido. Que estranho, nunca tinha visto tal sujeito. Ele parece saber do que se trata, começa a ler o livro. Ler? Pra mim eram palavras sem sentido, nunca tinha ouvido nada do tipo. Que língua era essa? E eu lá, perto, escondido. Deveria ter saído enquanto pude. Agora que não consigo mesmo, estão todos ali. Maldita curiosidade.
Medo. Um calafrio percorre meu corpo. Começo a suar frio. Que sensação ruim. Parece que estou em um cemitério. Sinto o cheiro da morte. Sinto o cheiro de sangue. Eu vejo até uma névoa vermelha rodear a pessoa que está lendo o livro... Névoa vermelha? Nossa. Como pode isso? O que será isso?
Ouço gritos de dor, gritos de desespero. Os soldados... Oh, não. Os soldados estão... Estão... Mortos. Todos os soldados que estavam ao redor daquele cara com o livro estão mortos. Até o capitão, que parecia saber bem o que fazer, está no chão. A névoa vermelha... Sim, era o que eu temia: sangue. É uma névoa de sangue. Sinto vontade de correr. Minhas pernas não obedecem. Não consigo me mexer. E se o mesmo acontecesse comigo? Fico ali mesmo, quietinho. Tenho medo de que escute o meu corpo tremer.
A névoa vai se juntando. Parece tomar uma forma humana. Cada vez mais rápido começa a girar. A pessoa que segura o livro ri, em êxtase. Maldito feiticeiro. O quê foi que fez? Que magia necromante usou? Seria... Oh, não. Não. Por favor. Tudo menos isso... As lendas... As lendas... As lendas eram reais. Aquele só poderia ser o Livro dos Mortos, escrito pelo próprio deus do mundo dos mortos, Kaven. Então estava aqui, nas ruínas. Quem diria. Nunca imaginei que estivesse tão perto. Se o tivesse encontrado, já teria o destruído. É um livro muito poderoso, traz rituais para invocação de demônios e animação de mortos. É uma blasfêmia sem fim. Diz à lenda que, quem o possuir, terá força suficiente para invocar o exército de Kaven e dominar todo o mundo. E agora? Ele foi descoberto. O Livro dos Mortos foi descoberto. Eu não sou soldado. Nunca gostei, sequer, de briga. Sempre evitei, ao máximo, situações do tipo. Sempre gostei de ficar aqui, curtindo a natureza, após o trabalho na minha casa. Era um trabalho duro esse, cuidar dos animais logo cedo, da plantação. Sempre gostei de relaxar, fumar meu cachimbo, beber e comer. E agora encontro um louco invocando demônios. O que farei?
As risadas viraram gritos. Aquele louco rindo agora está gritando. Gritos de dor. Parece sofrer. Tendo ver o que está ali. Aquele ser está com o braço transpassando o corpo do seu invocador. Nossa. Só ouço gritos. A mão da criatura sai de dentro do corpo segurando parte dos órgãos internos daquele louco. Ele mexeu com forças ocultas. Ele não devia saber como controlar. A criatura invocada matou a pessoa que o chamou. Depois disso, segura o livro com uma mão e começa a andar em direção oposta à minha. Que sorte. Uma oportunidade de fugir.
Eu levantei e corri. Corri como nunca. Corri desesperadamente. Corri para salvar minha vida. Atravesso a floresta mais rápido que qualquer animal selvagem. Cansado. Estou muito cansado. Não aguento mais correr.
Chego até minha casa. A voz me falta. Tento explicar para meus pais o que eu vi. Não consigo. Não tenho forças. Caio no chão. Procuro o ar. Não consigo respirar. Estou sufocando. Vejo o rosto de desespero deles. Eles não sabem o que fazer. Minha mãe chora, tenta me levantar. Meu pai ainda tenta ajudar, me segura, mas não consegue mais, a idade não deixa. Escuro. Tudo fica escuro. Ainda sinto calor. Quente.
Bom, foi isso que aconteceu. Foi assim que cheguei ao mundo dos mortos. É tudo o que lembro dos últimos momentos de minha vida. Meu corpo explodiu. Parece que parte daquela névoa eu aspirei. Meus pais, coitados, morreram também. O que tinha no meu corpo se espalhou pelas redondezas. Tudo o que foi de animal e planta morreu. O demônio invocado naquele dia está à solta. Quem poderá detê-lo? Como conseguir pará-lo? E o livro? Será que conseguirão toma-lo de volta?
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