domingo, 16 de janeiro de 2011

Lembranças de uma Guerra


Mais um dia de combate. O general ataca impiedosamente os seus inimigos. Já está na nona cidade, Mulfast. Mais uma, a última, até chegarmos à fronteira. Iremos invadir o quanto antes. Já limpamos tudo, essa escória não irá sobreviver. Estão recuando. Vamos atrás, nem que isso dure anos.

Ouvi falar que o general teve a família massacrada por esses rebeldes. Em sua louca luta por o que acreditam ser justiça, atacam cidades, saqueiam, roubam, pilham. Ghiruldor era uma pacata cidadezinha do interior. Viviam da agricultura. O que poderiam querer lá? Com ela não foi diferente, mataram todos, até crianças e idosos. Ele só escapou porque correu para a floresta, passou dois dias escondido. Depois disso jurou vingança. Iria procurar e limpar outros lugares atacados por essa escória.

E que luta é essa? Matar e destruir para conseguir provisões e armas para o “Exército da Libertação”, como se auto intitulam? Loucos. No início, era uma coisa até certo ponto romântica, uma luta por um ideal. Agora usam como desculpa para matar e estuprar. Esse é o motivo para os enfrentarmos. Essa história vai ter um ponto final. Essa batalha de anos vai acabar.

A província deles, Kosum, faz parte de Mégalus. Queriam que o nosso rei Ferdinam declarasse a sua independência, queriam se libertar. Aparentemente, não existe nada que leve a isso, sempre fomos um povo pacífico, nunca entramos em guerras. Dizem que é orgulho, são descendentes de uma linhagem de guerreiros, odeiam a paz, querem sempre guerrear. Como somos pacifistas, isso os incomodam. Querem a dita liberdade para poder fazer o que quiserem. Não é bem assim que o nosso rei quer que as coisas andem.

Começaram a invadir cidades perto da fronteira do território de Kosum e foram adentrando. Queriam impor pela força. Essa foi a desculpa, a independência. Quem se opôs teve o fim que mais esperavam seus agressores. Muitos morreram defendendo suas casas, seus vilarejos.

Pacifistas também tem limite. O general que o diga. Ficou louco quando viu o massacre da sua família, mas não podia fazer nada, era apenas uma criança. Esse foi o motivo de ter entrado para o exército real. Empenhou-se e trabalhou para conseguir chegar onde está, general do exército real. Eu sou apenas um sargento, cresci quando os ataques já ocorriam. Vi que não é nada bom guerrear. Vi amigos sendo mortos. Não quero mais isso. Nosso rei Ferdinam ainda é o monarca, está em idade avançada, mas parece muito bem disposto. Ele é um guia, uma inspiração para a guerra. Orgulho de suas ideias sempre visando o bem estar do povo. Guerra foi a última alternativa.

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Emboscada. Fomos vítimas de uma emboscada. Mataram todos do meu batalhão, apenas eu sobrevivi, por milagre. Estou ferido, mas estável. Sinto-me culpado pelos meus homens terem morrido. Estava seguindo as ordens do tenente. Eu tentei avisar que era muito arriscado seguir por aquele caminho, estávamos isolados do restante dos homens, mas ele não me ouviu e ordenou que seguíssemos em frente. Fomos massacrados. Desmaiei. Quando acordei, apenas corpos mutilados ao meu redor. Nossos inimigos já tinham saído de lá. Arrastei-me até aqui, as ruínas do que, aparentemente, era uma igreja. Espero que não voltem, ou estarei perdido.

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Estou a mais de doze horas aqui. Já destruí todos os papéis que levava, só guardo este diário ainda para que possa distrair a mente. Nossos planos não podem cair em mãos inimigas. O cheiro dos corpos em decomposição é muito forte. Pedaços estão espalhados por toda parte. Sinto-me muito fraco. Perdi muito sangue.

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Madrugada. Nenhum sinal de amigos ou inimigos. Nada. Acho que agora já posso sair e tentar procurar onde estão os outros. Espero ter forças para conseguir. Vou caminhar devagar, seguir pela floresta. Espero não encontrar aqueles loucos. Não estou em condições de lutar. Sede. Sinto muita sede. O quê eu aprendi sobre sobrevivência, espero ser útil.

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Encontrei uma casa isolada. Parece que os moradores saíram a pouco, ainda tinha uma mesa posta para o jantar. Nossa, que sorte a minha! Consegui beber e comer. Mas o que será que aconteceu com essas pessoas? E o que faz uma casa aqui na parte mais remota e isolada da floresta? Sempre achei que não existiam pessoas vivendo por aqui. Esta floresta é cercada por lendas e mistérios. Como não acredito nessas coisas, não tive nenhum problema em tentar seguir pelos seus caminhos.

Acho que vou ficar aqui mais um pouco. O sangramento parou, mas estou ainda fraco. Sinto-me melhor após a refeição. Só falta dizer que estavam me esperando, deixaram tudo pronto para mim. Vou me esconder e esperar aqui mesmo, é o jeito.

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Consegui descansar um pouco, pelo menos. E nada dos moradores voltarem. Hora de partir. Agradeço muito o quê encontrei. Espero que estejam bem, e que me desculpem por algo. Vou seguir ainda pela floresta. Ainda me resta muito chão pela frente. Vou cortar caminho seguindo por aqui. As ordens do general eram para contorna-la. Ninguém se atrevia a adentrar aqui. Vou acabar os encontrando mais rápido por aqui mesmo. O sol já está nascendo e preciso correr.

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Sabe quando você tem a sensação de estar sendo seguido? Estou aqui, abaixado atrás de uma pedra, escrevendo. Tive essa impressão enquanto caminhava. Podem ser meus inimigos. Sim, eles podem querer me pegar. Não vou servir de sobremesa para aqueles safados. Não, isso não. Querem me pegar? Vão ter que brigar.

Ouço vozes. Parecem crianças. São vozes fraquinhas e infantis. Seriam os filhos dos inimigos? Seriam os filhos dos donos da cabana? Vou procurar e tirar essa dúvida, quem sabe descubro algo.

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Sangue. Minhas mãos estão sujas de sangue. Eu matei aquelas garotinhas. Quando me viram, gritaram e correram. Eu não podia deixar que continuassem a chamar a atenção, peguei uma pedra e joguei. Acertei a cabeça de uma delas, parecia ter uns 6 anos. Ela caiu. A outra ficou em estado de choque, vendo a amiga caída. Vim e cortei a sua garganta. Ela parecia mais nova, cerca de 4 anos. Eu não podia deixar que elas ficassem gritando. Eu seria descoberto em pouco tempo.

Para ter certeza, cortei a garganta da primeira. Ela sangrou feito um animal e eu fiquei lá, vendo aquela cena. Duas crianças mortas. Não se pareciam com ninguém perigoso, mas eu não poderia deixar que revelassem a minha posição.

Vou confessar aqui o que nunca mais direi: senti uma louca sensação de bem estar quando as matei. Ver o seu pequenino corpo se debater enquanto o sangue jorrava das suas gargantas abertas me fez sentir... Sentir... Deus! Estou ficando louco!

Voltei para trás daquela pedra e estou escrevendo. Será que alguém vai sentir falta daquelas duas?

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Sede. Fome. E eu tive coragem de sair daqui? Nada. Meio-dia e eu aqui, escondido feito uma presa, como um animal amedrontado. Lembro-me de ter passado pelo que me pareceu um rio, ouvi ao fundo. Talvez, se voltar um pouco, consiga encontrar água. Preciso ir com cuidado, meus inimigos podem estar me esperando, podem estar lá, de tocaia. Tenho que ser esperto! Vou encher o meu cantil e cair fora! Tomara que consiga.

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Voltando pelo mesmo caminho, me deparei novamente com o corpo das meninas. Eu matei aquelas garotas. Nem quis ficar olhando, passei rápido. Vi que uma raposa estava puxando uma, deveria ser uma mãe querendo alimentar os filhotes, isso é o que se faz, se cuida da família.

Família... Eu tive uma família. Eu tenho uma família. Eu... Não sei mais. Não me lembro direito. Eu tenho alguém me esperando... Acho... Não consigo recordar. O que está acontecendo?

Cheguei ao rio e, com cuidado, enchi o meu cantil. Mais rápido que um raio, voltei para dentro da mata fechada. Não poderia ficar exposto. Não posso dar margem a ataques dos meus inimigos, eles nunca me pegarão com vida.

No caminho de volta, notei que, agora, apenas uma parte de um dos corpos estava lá. Os animais selvagens eram rápidos. Em tempos de guerra, nem eles poderiam se dar ao luxo de recusar alimento.

Percebe o que estou dizendo? Estou dizendo que duas garotinhas que estavam correndo ainda a pouco, que eu matei, eram alimento para animais. Nossa! O que eu me tornei?!

Vim parar novamente na cabana. Ainda está abandonada. Nenhum sinal, parece que eu acabei de sair. Estranho, muito estranho. Pretendo passar a noite aqui. Logo cedo irei sair.

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Faz uns cinco dias que estou aqui na cabana. Nem escrevi esses dias. Eu não sei mais o que fazer, só ando, ando e volto ao mesmo lugar. E o pior, a lembrança dos corpos daquelas meninas não me sai da mente.

Estou com fome. Não tem mais nada para comer aqui. Estou racionando as poucas provisões que me sobraram. Não devem durar mais. Estou, mesmo assim, escrevendo novamente. Vai que preciso me lembrar do que aconteceu. Não me lembro de muita coisa do que fiz antes de vir parar aqui, só o que consegui ler aqui nas minhas anotações. São de demasiada importância. Sinto que enlouqueceria sem ler.

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Já são dez dias tentando sair dessa floresta imunda. Dez dias. Não consigo achar o caminho de volta, não consigo seguir em frente. E o pior é lembrar daquelas duas garotinhas... Como vieram parar aqui? O que estavam fazendo? Quem estava as acompanhando? E o prazer que senti ao mata-las, de ver o sangue jorrar...

Não, eu não sou um monstro. Eu só não queria que meus inimigos soubessem da minha posição. Eu não poderia deixar que me encontrassem. Vou matar todos, um por um. Nenhum deles irá sobreviver. Nenhum. Nenhum deles. Nenhum. Não. Não. Nenhum. Nenhum deles. Vou matar. Vou matar todos. Todos. Um por um. Todos. Tudinho. Todos. Nenhum vai sobreviver.

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Décimo terceiro dia. Estou faminto. Não acho mais nada para comer. E não consigo mais achar o caminho até o rio. Sede. Fome. Estou um caco. Estou morrendo, sinto isso. A minha ferida infeccionou. Está cheirando muito mal. Eu não tenho mais forças. Essas podem ser as minhas últimas palavras, até conseguir escrever está difícil. Preciso manter um registro. Preciso fazer com que conheçam a minha história. Não posso passar despercebido, afinal eu sou... Sou... Porra, esqueci meu nome! Como me chamo? Quem sou eu?

Uma luz cegante, forte, de vez quando, ilumina toda a cabana. Nesse momento, ouço vozes. Devem ser eles. Meus inimigos. Fico sempre imóvel, não posso deixar que percebam que estou aqui. Quero mata-los. Quero destruí-los. Ouço uma música também, como se fosse uma daquelas músicas que tocavam no quartel. Estranho... Lembro da época do quartel, lembro do meu batalhão, mas não lembro, sequer, do meu nome.

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- Senhor? Senhor? Está acordado? Está me ouvindo?
- Onde estou?
- Está em um hospital, senhor. Foi achado com vida após o ataque ao seu batalhão.
- Como é que é? E a cabana? E a floresta?
- Cabana? Floresta? O senhor está aqui há dias, senhor. Estamos cuidando dos seus ferimentos, logo poderá ir.
- Hospital? Como? Quando? Essa música... Lembro dessa música! Tocava na cabana!
- O seu companheiro de quarto adora essa música, senhor. Sempre ouve.
- Então eu estou aqui tem muito tempo... Então eu não matei aquelas meninas! Então eu não sou um monstro!
- Senhor, está bem? Está delirando! Vou chamar o doutor!
- Não, enfermeira. Eu estou bem. Apenas estava perdido dentro de um sonho, só pode. Estou feliz de estar de volta. Agora sei, fui ferido e trazido para cá, meu batalhão foi atacado.
- Sim, senhor. Estamos cuidando de você. O senhor foi achado sem identificação, como se chama?
- Meu... Nome? Meu nome é... É... Não consigo lembrar!
- Tudo bem, senhor. É comum que, após forte trauma, esqueçamos de algumas coisas...

Neste momento, duas pequenas garotinhas adentram ao quarto.
- Mamãe! Mamãe! Chegamos!

Os olhos arregalados e o rosto pálido denunciam o desconforto. Reconhece na hora quem eram: as duas garotinhas da floresta! Ele as matou nos seus sonhos! Mas como? Segurou o travesseiro, como se tentasse agarrar algo para se segurar, para não cair, apesar de estar deitado. Sentiu algo. Eram as suas anotações. Estavam embaixo do travesseiro.

Começou a ler... Todas as anotações estavam lá. Todas. Inclusive sobre as meninas. Mas como? Escrevera enquanto dormia? Gritou. Um grito de pavor. Um grito de angústia. As meninas correram assustadas, como na floresta, como se estivessem sendo perseguidas, como se aquele homem louco fosse as atacar. A enfermeira pulou e o segurou, gritando por ajuda. Na mesma hora, outras enfermeiras vieram em seu auxílio, uma delas com uma seringa. Injetou no soro um poderoso calmante. O homem foi relaxando e parando de gritar. Estava, enfim, dormindo.

Viu uma luz. Uma luz cegante. Estava de volta à cabana. Estava de volta aquele lugar. Mas não estava sozinho, as meninas estavam lá, vivas. Cada uma segurava uma faca. Partiram pra cima dele. Não conseguia gritar, não conseguia se mexer. Sentiu cada golpe, sua pele sendo cortada, o sangue saindo cada vez mais. Dor. Muita dor.

Acordou gritando. Estava de volta ao hospital. Dor. Muita dor. Viu que estava sozinho, viu que apenas as meninas estavam lá, como na cabana. Cada uma segurava uma faca suja de sangue. Observavam e riam. Riam alto, enquanto o homem se contorcia de dor. O seu último suspiro. A última palavra:

- Por quê ?!

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