domingo, 16 de janeiro de 2011

O Ritual


Oito horas da noite. Um jovem atravessa a rua e chega à frente de uma casa. Toca a campainha.

- Oi, senhora Ribeiro. O Fernando está?
- Oi, Saulo. Ele está sim. Entre. Está em seu quarto. Quer que guarde sua mochila?
- Não, obrigado.

Saulo sobe as escadas e chega à porta do quarto do Fernando. Dá duas batidinhas e entra.

- Oi, Fernando.
- Opa. Entra aí, Saulo.
- Trouxe o que você me pediu, está aqui na mochila.
- Ótimo. Vamos esperar o Max. Ele virá de carro e nos levará até o lugar.
- Você acha mesmo que devemos continuar com isso?
- Vai amarelar agora? Tá com medo?
- Não é isso... É que... Tenho receio...
- Besteira. Vem. Deixa mostrar o jogo novo que comprei.

Quase que pontualmente, passando pouco das dez horas da noite, um furgão preto com desenhos que parecem fogo nas laterais estaciona em frente à casa dos Ribeiro. Uma figura mal-encarada, usando uma velha jaqueta jeans com logos de bandas de black metal, e cabelo moicano desce e se encaminha até a porta. Toca a campainha.

- Boa noite. Fernando, por favor.
- Espere um pouco... - a mãe de Fernando responde fazendo uma cara de desaprovação, um pouco de desapontamento, talvez, vendo aquele cara lá parado na frente de sua casa. Nem conseguiu virar e chamar o filho, ele e o amigo já estavam descendo as escadas e dizendo tchau.
- Tchau, mãe. Volto mais tarde.
- Boa noite, senhora Ribeiro. - responde Saulo.
- Boa noite, senhora. - diz Max, enquanto caminha até o furgão.

A mãe fica na janela, observando. Vê quando seu filho entra no carro. Um sentimento de medo e insegurança bate junto com um calafrio. Não sabia bem, mas aquele cara, o Max, nunca lhe pareceu ser boa pessoa. Ouviu falar que tinha saído de um reformatório há poucos meses. Não adiantava pedir para o filho deixar de andar com ele, era amigos desde sempre.

No furgão, os três amigos vão conversando. Max, na direção, parece um pouco tenso. Saulo está preocupado com algo. O mais relaxado é o Fernando, puxa uma latinha de cerveja de dentro da mochila. Mesmo um pouco quente, abre e começa a beber. Oferece a Saulo, mas ele não bebe nada. Max puxa a latinha e toma um gole.

O carro para em frente a uma casa. Max desliga o motor e apaga os faróis. Depois de dois minutos de espera, uma garota sai pulando a janela do primeiro andar, desce por uma árvore e chega ao carro, um pouco cansada, mas com um ar de felicidade sem tamanho.

- Oi meninos!
- Oi, Mércia! - os três respondem em coro.

Mércia é amiga de infância de todos. Eles tinham a mesma idade, dezoito anos. Todos cresceram juntos, estudaram sempre na mesma sala. Eram bons amigos. Era daquele tipo de amizade pra vida inteira e, quem sabe, além dela.
- O que vamos fazer hoje? - pergunta a curiosa garota.
- Você vai ver. Está tudo esquematizado. - responde Fernando.

Saulo observa tudo calado como sempre. Está perdido nos seus pensamentos. Faz uma cara de preocupação que chama a atenção de Mércia.

- Saulo? O que houve? Está tão preocupado...
- Nada. Não é nada.
- Aconteceu sim. Anda. Pode falar comigo...
- Ele disse que não é nada, então não é nada! - responde Fernando, atrapalhando a conversa.
- Tá, tá. Não está mais aqui quem perguntou. - responde Mércia, virando o rosto e olhando pela janela.

Já é quase onze horas da noite. As ruas da cidadezinha estão vazias. Não se vê ninguém andando por aí. Tudo está calmo e tranquilo. O silêncio só é quebrado pelo barulho do furgão cruzando as ruas. Estão chegando perto do cemitério.

- Cemitério? - pergunta Mércia. - Por que estamos indo a um cemitério? Pensei que íamos ao cais...
- Aqui é mais interessante. - responde Fernando.

Saulo está perdido em seus pensamentos, ainda. Parece em outro mundo. Continua a olhar pela janela, parece enfeitiçado pela lua cheia. Mesmo com os faróis desligados, parece que ela irá iluminar todo o caminho. Max está tenso na direção, está sem o seu som do carro. Tudo o que tem pra fazer o faz ouvindo música. Dirigir sem ouvir música é um martírio para ele.

O furgão para em frente ao portão do cemitério. Não parece ter ninguém por perto. Max dá a volta e para ao lado. Todos pulam o muro lateral, mais baixo, e entram naquele ambiente “acolhedor” para uns, “tenebroso” para outros.

- Certo. E agora? - pergunta a garota.
- Vem. Anda. Vamos ali. Quero mostrar uma coisa pra você... - responde Fernando, com um ar prepotente.

Max e Saulo vêm logo atrás. Todos carregam as suas mochilas. A única que não tem nada é a Mércia, está apenas com suas botas e jaqueta. Está uma noite um pouco fria.

- Aqui. Este é o lugar. - diz Fernando. Todos sentam em forma de círculo. Ele, então, puxa um isqueiro do bolso e acende uma vela que tirou da mochila, bota no centro. Partindo de Fernando e fazendo um percurso horário estão Saulo, Fernanda e Max, nesta ordem. Fernando, então, começa a falar.

- Eu estava caminhando pela Floresta Perdida...
- Você foi caminhar por lá? - interrompe Saulo.
- Deixa eu continuar, por favor. Bom, como dizia, fui caminhando por lá e fiquei perdido. Procurei e procurei o caminho de volta, mas não achava. Estava sem o meu celular. Quando já estava ficando sem esperanças de sair, encontrei uma gruta. Fui entrando, parecia tudo escuro, quando tropecei em algo. Parei para ver o que era. Para meu espanto, era isso!

Nesse momento, Fernando tira de dentro da mochila o que parece ser um velho livro. Todos olham curiosos. A luz da lua ilumina e todos podem ver claramente que se trata de um livro antigo, com uma capa singular.

- Isso aqui, na capa, é pele humana! O ruim é porque está escrito em um inglês arcaico, me perdi bastante para conseguir traduzir...
- Que nojo! - diz Mércia.
- Puts! Que maneiro! - responde Max.
- Viemos aqui para você mostrar isso? - pergunta Saulo.
- Calma, amigos. Saulo, me passa o que você trouxe.

Saulo tira da mochila uma faca de caçador e uma bacia que parece ser de prata.

- Isso é da minha mãe. Tenho que levar de volta. Se ela descobre que eu peguei, estou perdido...
- Calma! Não tem pra que ficar pensando nisso... - diz Fernando. - Vejam só...

Nesse momento ele se levanta, olha de lado. Parece procurar algo. Anda até uma árvore. A luz do luar ajuda a encontrar o ninho de um pássaro. Ele olha e encontra um filhote. Pega o pequeno animal com a mão, parece que a mãe não estava. Volta para junto dos amigos e senta no lugar onde estavam.

- Vejam só... - diz ele, enquanto segura o animal com a mão esquerda e, com a direita, a faca, sobre a bacia.
- O que você vai fazer? - pergunta a incrédula Mércia.
- Vejam!

Fernando começa a entoar dizeres que parecem ser em uma língua diferente, esquisita. Todos olham assustados e espantados. Ele, então, rasga o peito do filhote e coloca o pouco sangue e restos mortais dentro da bacia.

- Tá maluco? O que foi isso? - grita Mércia.
- Calma. Calma. Veja agora...

O filhote morto está no fundo da bacia. Fernando, então, a segura, levanta acima dos ombros e diz palavras esquisitas novamente. Quando põe novamente a bacia no chão, para espanto dos amigos, o filhote de pássaro aparece vivo e pulando. Todos ficam abismados com o feito. Que tipo de bruxaria seria aquela?

- Esse livro, meus caros, contém dezenas de rituais. Isso foi apenas um dos pequenos.

Todos estão espantados e abismados. Fernando se levanta, pega o filhote e o devolve para o ninho. Volta caminhando lentamente, enquanto os outros três estão conversando, espantados, e olhando o livro. Subitamente, ele chega por trás de Mércia e a golpeia nas costas. Crava a faca inteira no lado direito, enquanto a outra mão tapa sua boca. Não deu tempo para nada. Não conseguiu gritar, correr. Nada. Mércia cai morta.

Max levanta-se e desfere um soco no rosto de Fernando, que cai, espantado.

- Seu louco! Por que fez isso? - grita o furioso Max.

Saulo pula e tenta conter a fúria do amigo, Max queria partir pra cima de Fernando e quebrar cada osso do seu corpo. Ele sempre teve uma queda pela Mércia, nunca chegou a dizer isso a ela, mas sabia que a garota suspeitava. Sempre aquela troca de olhares mais insinuante. Saulo está transtornado.
- Calma, brutamontes. Veja isso.

Fernando se levanta e vai até sua mochila. Pega alguma coisa que não dava para ver o que era e começa a entoar cantos e dizeres. Coincidência? Não se sabe, mas, neste momento, nuvens taparam a lua. Tudo escureceu e apenas a luz fraca da vela poderia ser vista ali. Saulo ainda está tentando segurar Max, mas suas forças estão se esgotando. Todos ficam paralisados com a cena que vem logo a seguir: Mércia levanta-se. Sim, o corpo de Mércia está de pé. Saulo e Max ficam lá, parados, sem mover um músculo. Não conseguem acreditar. Mércia, a garota assassinada pelo amigo a poucos minutos atrás levantara.

- Mércia? - pergunta Max.

Ela permanece imóvel. Em pé, mas imóvel, com a cabeça baixa e o cabelo cobrindo o rosto. A faca ainda está cravada em suas costas.

- Desculpe. - diz Fernando. Caminha até lá e puxa a faca. Mércia não esboça reação nenhuma.

Saulo não consegue conter o seu medo diante daquilo, tenta andar para trás e tropeça caindo em cima de uma tumba. Max vai caminhando em direção de Mércia.

- Mércia? Mércia? - diz Max enquanto dá passos curtos e assustados.

Mércia levanta a cabeça, revelando um rosto sem vida, olhos vazios e totalmente brancos. Ela pula no pescoço de Max, mordendo com toda a força. Ele grita. Os dois caem. Sangue jorra, ela tinha cortado bastante fundo, chegando até a arrancar parte da pele. Enfim, solta o atordoado rapaz, que caminha tentando se levantar, segurando perto do ferimento, tentando fazer o sangue estacar. Não consegue andar muito, aquilo que parecia ser Mércia pula novamente em suas costas, o segura forte, derruba e começa a rasgar a sua pele, começa a dilacerar o seu pescoço.

Saulo levanta-se e corre. Tenta ir até o muro mais baixo que havia pulado para entrar. Não consegue dar nem 10 passos e é atingido nas costas pela faca. Olha para trás e vê que Fernando a arremessou. Cai e não tem tempo nem de perguntar o porquê, estava morto.

Mércia larga o corpo já dilacerado de Max e parte para cima de Saulo, começa a morder e rasgar tudo. Fernando só ri. Uma risada doente e maldosa. Parece em êxtase com os seus “poderes”, parece que o livro lhe deu algo que ninguém jamais poderia acreditar, o poder de invocar os mortos e os controlar. O riso dá lugar a gritos quando Mércia pula em seu braço.

- Eu sou seu mestre! Obedeça-me! - grita Fernando.

Mércia continua a morder e rasgar o seu braço, conseguindo, enfim, arrancá-lo. A criatura voltou-se contra o seu mestre. Clássico das histórias. Poderia a criatura sucumbir aos encantos do mestre? Poderia o mestre controlar a criatura?

- Garotos! O que estão fazendo aqui dentro?

Uma voz grita no meio do cemitério, fazendo a chama da vela tremular. Era o zelador do lugar, percebeu os gritos e foi ver do que se tratava, os garotos recolhem apressadamente tudo, jogando dentro da mochila e partem em disparada, pulando o muro e entrando no furgão. Mais uma aventura dos amigos inseparáveis. Mais um jogo de RPG que não tinha chegado ao final, mas que seria relembrado mesmo assim, como da vez que foram para a montanha e... Isso é outra história...

Um comentário:

  1. Metall...
    Como eu já te disse esse foi um dos seus textos que mais gostei, só que com a sua inspiração constante, fica meio dificil escolher o melhor entre tantos que já vieram e tantos que virão.

    Beijinhos

    Silinha

    ResponderExcluir